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Posts Tagged ‘Medos’

Aqui há uns dias pediram-me para fazer de Capuchinho Vermelho. Eu empurrei um lenço vermelho por cima da cabeça e tentei pôr o meu ar mais angelical. A filhota deu dois passos para trás, olhou-me como um encenador experiente e depois de ponderar dois ou três segundos, deu-me a sua aprovação: “Estás bem.”.

Perguntei-lhe quem iria ela ser. Ela respondeu que seria o lenhador. Foi até à porta do quarto e deu meia volta. Quando voltou já encarnara o seu papel. “Eu sou o Lenhador, menina Capuchinho Vermelho… Não tenha medo… Eu vou protegê-la!”. “Proteger-me do quê?” perguntei-lhe com um ar supostamente espantado. “Do Lobo Mau que está além escondido atrás das árvores…”. Respondeu-me fingindo um ar amedrontado e apontando para o armário.

Olhei em direcção às “árvores” e exclamei: “Ah! Eu não tenho medo… Onde é que ele está? Onde é que ele está que eu já lhe digo…”. A filhota fez um ar algo atónito e murmurou “Não… Não… Que o Lobo é muito mau, menina…”. Eu lancei-lhe um ar incrédulo e levantei-me. Fui até ao armário e fingi dar um murro no topo da cabeça do lobo que se escondia atrás dele. “Pronto. Já está. Não há mais Lobo Mau!…”.

A filhota olhou-me com um ar ainda mais incrédulo. Por momentos pareceu-me uma actriz deixada sem deixas. Mas enganei-me. Ela lançou-me um meio sorriso e do topo dos seus quatro anos recordou-me: “Oh mãe… Há muitos lobos por aí…”.

Pois há filhota. E logo a seguir, quando foste outra vez até à porta do quarto, deste meia volta e voltaste, mostraste-me que também já sabias outra coisa. “Menina Capuchinho Vermelho… Não tenha medo! Eu sou o Lobo Bom mas não lhe faço mal!… Também há lobos bons, sabe?…”.

Catarina Santos

Psicóloga Clínica e Psicoterapeuta Psicanalítica

Directora Técnica e Coordenadora da Equipa Psicopedagógica de A Casa Amarela.

Foto: Jasmine Becket-Griffith

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Numa sociedade moderna, detentora de variadíssimos meios de comunicação, qual o lugar da literatura de expressão oral na infância? Qual a importância destes contos no desenvolvimento da criança?

A procura de algum significado para a vida, trata-se de um processo pessoal e subjectivo que se inicia bastante cedo. Independentemente das inúmeras opções que cada indivíduo possa tomar, existem temas que a todos pertencem.

Os contos tradicionais são exemplo de uma herança cultural colectiva, focalizada nas vivências humanas. Mediante uma linguagem própria, recorrendo ao «maravilhoso», grandes emoções são experimentadas nestas histórias, onde estão simbolizados conflitos humanos universais. Nomeadamente conflitos comuns no pensamento da criança, como as rivalidades, a rejeição, a luta pela independência.

É comum num conto de fadas ser exposto um dilema de forma concisa e directa, o que permite à criança enfrentar o problema na sua forma mais essencial. Um enredo mais complexo poderia ser-lhe confuso. O conto atribui aos medos da criança, muitas vezes confusos e mal delimitados, uma representação precisa. Dá-lhes um nome e sugere uma maneira de lidar com eles.

O bem e o mal estão presentes, mas ao serem representados simbolicamente (em personagens do maravilhoso) e afastados temporalmente (“Era uma vez…”; “Há muito, muito tempo…”), permitem que a criança encontre significados que lhe serão úteis, sem se traçar uma linha directa com as suas vivências reais.

A literatura de expressão oral incita à criação de um palco imaginário, onde é possível integrar significados, encorajando ainda o acto criativo.

Uma das personalidades que mais amplamente se debruçou sobre esta área foi o psicanalista vienense Bruno Bettelheim, autor do livro “Psicanálise dos Contos de Fadas”.

Segundo Bettelheim, a cada conto corresponde um sector da evolução interior do indivíduo, utilizando alguns exemplos populares: em João e Maria, a luta relutante pela independência dos pais (o medo da separação); em Capuchinho Vermelho, a exposição prematura a experiências para as quais ainda não se está preparado (primeiros desvios às orientações dos pais); em Branca de Neve, o conflito/rivalidade entre filho e figura parental (simbolizado no conto pela madrasta), em A Bela e o Monstro, a temática antiga do amor existente entre progenitor e filho, do qual nascerá mais tarde um amor diferente, que o fará unir-se à pessoa amada.

O bom herói é largamente escolhido como figura de identificação, por se afigurar extremamente agradável à criança, em todas as suas lutas. O modo como o protagonista, frequentemente o mais pequeno, ou o mais novo, se desenvencilha dos obstáculos deparados, confere um sentimento de esperança na criança de que também ela, vencerá as suas piores ameaças. De acordo com o referido autor, quanto mais simples e directa é uma personagem, mais rapidamente a criança se identifica a ela e rejeita a má.

O “final feliz” que alguns adultos consideram irreal e falso, parece ser uma óptima contribuição que estes contos fornecem às crianças, encorajando-as a lutar por valores amadurecidos e a construir um sentimento positivo em relação à vida.

Cada vez há evidências maiores no sentido dos sistemas de crenças terem um efeito profundo sobre o funcionamento psicológico, de infundirem esperança e significado, os quais poderão ir assistindo na superação das dificuldades com que nos possamos deparar.

“E viveram felizes para sempre…”

 

 

Catarina Barros

Psicóloga Clínica

Ilustração: http://flor-de-sol.blogspot.com

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